08 June 2008

Uma história

Parte 1

- Fumas muito raramente.
Ela olha-o de soslaio. Já o tinha observado ali, e sabia que ele a olhava fixamente e com fascínio, não muito diferente de todos os outros homens, e sabia que mais tarde ou mais cedo ele iria dizer qualquer coisa. Só nunca imaginou que seria isto.
Marta não responde. Apesar de surpreendida, não importa quão original seja a frase de engate, e quão giro seja o tipo. Ela faz aquele ar de desprezo que faz a todos. É esse o seu truque de engate. Mas neste caso acrescentou uma expressão que denunciou a exigência de uma explicação.
- Sim, fumas muito raramente. Já te mudaste para aqui há duas semanas e esta é a segunda vez que te vejo fumar.
Esta merece resposta.
- E tu és o quê? Um desempregado que nunca sai de casa, toma conta da carrinha das mudanças dos vizinhos e conta as vezes que vão à varanda e fumam? Posso muito bem ter fumado em casa milhões de vezes nestas duas semanas.
- Por acaso trabalho em casa. E tu és uma fumadora de varanda, dá para ver.
“Que irritante este homem”, pensa. E revira os olhos sem responder.
- Porquê que fumas assim de maneira tão estranha? Estás a tentar seduzir-me? – Ele insiste. Ela ri com desprezo e depois diz:
- Não fumo de maneira estranha. Fumo e pronto.
- Não, tu enrolas o fumo na boca quando puxas uma quantidade exorbitante, dás um primeiro mini bafo que nem é travado, e finalmente travas e expiras, deixando sair uma quantidade interessante de fumo que é fisiologicamente impossível de expirar de uma só vez. Não percebo como nem porquê o fazes. Mas deixemos o como. Presumo que o fazes porque sabes que tens os lábios bonitos e habituaste-te a seduzir os homens assim. É a maneira mais perspicaz de fumares sem pareceres reles, e enquanto brincas com o fumo os teus lábios ficam maravilhosos.
Ela boceja.
- Não, eu fumo assim porque fumo assim, os lábios giros são só um bónus que é inerente. E não acho minimamente interessante pretender um pouco de calma e privacidade e vir para a varanda para ser psicanalisada.
E atira o cigarro para fora e sai fechando a varanda atrás de si. Fá-lo suavemente mas apetecia-lhe ter partido o vidro. A vida de Marta é assim. Uma história de contenções e convenções, uma actriz do melhor a trabalhar no Marketing. Para ela não existem mas, nem não obstantes, nem poréns. Nem sins nem nãos, na vida de Marta só existem concertezas. Tudo o que ela faz fá-lo com uma segurança que parece inatingível para todos os mortais comuns. É forte, decidida, solteira. Tem uma vida de luxo e tudo o que tem ganhou-o à força da sua teimosia. Na sua vida não há incertezas, nem tempo para correr riscos. O ramo do Marketing é um campo competitivo, e ela não pode demonstrar-se indecisa em relação às miúdas mais novas da empresa. Sem se dar conta, transportou o Marketing para a sua vida, e não há ninguém melhor do que ela a vender o seu próprio produto. Se quisesse, conseguiria convencer o Papa a santificar Hitler. Mesmo que se arrependa de uma decisão de tomou, de uma aquisição que fez, de uma opinião que tem, ela mantêm-se agarrada a ela. Repensar, desistir, ponderar, são tudo sinais de fraqueza. Mesmo que ela não acredite realmente numa apresentação que está a fazer de um produto, mesmo que a sua pesquisa não tenha sido suficiente, ela demonstra saber tudo. Para si não há o não sei. Ela mente e acredita que aquele produto é mesmo fantástico e magnífico. “A vida é um enorme jogo de póquer”, repete-o constantemente, para si a melhor técnica para demonstrar confiança é o bluff. Não importa se não nos sentimos confiantes, desde que façamos os outros acreditar que somos fantásticos, tornamo-nos realmente fantásticos.
É por isso que quando Marta vai a um concessionário já sabe o carro que quer, e quando vai à agência de viagens já sabe para onde viajar. É prática, rápida e versátil. Não perde tempo porque não tem muito tempo a perder, e quando toma uma decisão da qual não está certa, simplesmente não se arrepende, aprende a habituar-se a ela. Adapta-se. Talvez seja por isso que nunca se casou, tem medo de não se adaptar e de não poder voltar atrás porque foi essa a regra que adoptou para a sua inteira vida. Mesmo quando tinha 13 anos e decidiu mudar-se para a casa da tia porque vivia em Lisboa e estava aterrada de medo que a grande cidade a engolisse, Marta não voltou atrás para nunca ter de dar razão à mãe. A mãe de Marta nunca lhe impôs limites, sempre lhe deu liberdade de escolher o que queria mesmo desde pequena. Para ela as pessoas só aprendem com os erros, e de nada lhes serve serem protegidas. Então, deixou-a ir para Lisboa assim que esta lhe pediu, mas primeiro avisou-lhe que aquela vida é fria e superficial e que mais cedo do que ela imaginaria, ela voltaria.
Marta nunca voltou. Primeiro odiou toda a gente, para passar a achar a cidade divertidíssima por volta dos 16, para depois voltar a odiá-la. Mas na vida de Marta não há o “não sei” nem o “talvez”, por isso é que ela não voltou para o regaço da mãe e nem lhe faz mais do que três telefonemas por ano: Natal, ano novo, e aniversário. Os outros feriados cristãos nem sequer existem.


Parte 2

- Fica sabendo que a palavra mini bafo não existe.
- O quê, estiveste este tempo todo em casa a ver isso no dicionário? E mini bafo são duas palavras.
- Não se for separado por um hífen.
- Mas se for um neologismo existe, não precisa estar num dicionário.
- Os neologismo são uma desculpa barata, comum e fácil para os pseudo-intelectuais que dizem coisas à toa e depois tentam remediar a sua ignorância dizendo que inventam palavras. Não é inteligente nem divertido. Aborrece-me.
- Nunca vi ninguém argumentar sobre uma coisa que não existe, e no entanto defender que esta é separada por um hífen. Se a primeira premissa é falsa, a segunda é necessariamente falsa, nunca ouviste dizer?
Marta raramente fica sem resposta. Pode parecer que não, mas encontrar um homem solteiro, giro e inteligente é coisa rara, mesmo para uma cidade tão grande. E rico, claro. Porque se mora na varanda a seguir à sua, tem de necessariamente ter o mesmo poder capital que ela tem. A não ser que ele se tenha inundado em prestações como ela o fez, para ter uma casa ao lado do El Corte Inglés, com vista sobre o Parque. Quão ostentoso é, ter um apartamento que, para além de se situar na mesma rua do Parque Eduardo XII, está colado a um centro comercial de luxo? E para Marta o dinheiro é muito importante, ela lamenta, mas é.
Ela ri-se, para se safar de responder àquela brilhante argumentação. É o que faz quando fica desarmada, o seu sorriso é o contra-ataque sem armas perfeito que a ajuda a sair bem sucedida sempre. Mas na verdade está fula com ele porque fumar é o seu acto solitário. Fá-lo porque precisa daqueles momentos de reflexão sozinha, desde que fumar se tornou um flagelo social aos olhos de toda a gente, ela aproveita isso como desculpa para se esgueirar por breves momentos dos jantares enfadonhos da firma (que, ironicamente, dão pelo nome de socialização) e aprecia cada momento sozinha. Marta sempre foi uma pessoa solitária, e sempre batalhou pela sua solidão. Nunca quis ter colegas de casa, nem mesmo quando andava na faculdade e o dinheiro era curto. E fumar é o derradeiro acto solitário. Ela nunca percebeu bem, por exemplo, aquelas pessoas que dizem que fumam apenas socialmente. Acha-las ridículas. “Não me venham com tretas, fumar deve ser solitário”, pensa ela, por cada vez que alguém evoca o social para fumar. Ela própria certifica-se que ninguém está por perto quando utiliza a desculpa para fumar para ter uns momentos consigo própria, porque não quer ser acompanhada e nem quer ter de fazer conversa de fumo.
- Bolas, o tabaco está caro...
- Sim, um dia vou deixar de fumar...
- E faz mal à saúde...
- Pois faz. Andamos a pagar para morrer...
Para ela tudo isso é ridículo, fumar é uma escolha. Odeia pessoas que não têm nada de pertinente para dizer, que nada acrescentam à sua sabedoria. Principalmente, odeia vítimas. Ela fuma porque quer, não considera uma fraqueza nem um vício que não consegue controlar, considera sim uma escolha, uma decisão, quer lá saber se é estigmatizada, se a mata, se é caro. Ela fuma por que quer, não é nenhuma vítima do seu vício. Assim como ser solitária e independente, Marta é aquele tipo de mulher que também não vai à casa de banho com as amigas. Vai sozinha.
Marta tem isso tão presente no seu íntimo que escolhe sempre parceiros não fumadores, para ter uma desculpa para se levantar da cama depois do acto sexual. Assim, uma vez vestida, não é tão difícil sair e voltar à solidão da sua casa. Começa por um “vou fumar um cigarro à janela” e depois esgueira-se. Em casos mais extremos, com aqueles que não são casados e querem que ela passe a noite lá em casa, ela diz que vai à estação de serviço mais próxima comprar tabaco e depois simplesmente faz um telefonema a dizer que está cansada e perto de casa, portanto, por uma questão de logística de quilómetros, vai para sua casa. Ela é assim, bastante frontal no que diz respeito a tudo, excepto relações inter pessoais.
Mas acima de tudo, o que mais irrita a Marta é o facto de ela desta vez estar a gostar desta companhia. Mas ela não o demonstrará.
Depois do sorriso acanhado que raramente faz, despede-se com a mínima educação e a máxima frieza que a caracteriza e sai.

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