Quase que o vejo a falar comigo. Fecho os olhos e sustenho a respiração. E imagino-o. Ele diz-me qualquer coisa, o tema não importa. O tempo e o espaço muito menos. A dor de suster a respiração quase que torna a minha fantasia real. Acrescenta-lhe uma dimensão física. Confere-lhe dor. Confere-lhe tempo, espaço, sentimento. Se nada sentir, menos real será. Sustenho a respiração o maior tempo possível, porque quanto mais aguentar, mais tempo durará aquela pequena meditação que me confere um realismo incrível do diálogo que ele está a ter comigo. Sinto-me afogar... Respiro. E a dor acaba, o sentimento da dimensão física termina, a fantasia desvanece-se. Volto a suster a respiração. A dor torna-se mais intensa, o cérebro lateja-me, e vejo-o. É clara a imagem. Simultaneamente, mais uma vez numa situação agridoce, tenho a mais pura das sensações de serenidade, e a mais intensa sensação de dor. Dor que é física. Quero-o. Quero-o mais que tudo aqui, presente, agora, comigo. E afinal o tempo já é importante: agora.
Consigo ouvir o seu tom de voz fantástico... não penso em nada. Nem aqui estou. Viajo sem drogas ou aeroportos, viajo no contexto espacio-tempotal apenas com o poder da mente. O poder do desejo. Obrigo-me a sonhar acordada, já que os sonhos recalcados no meu inconsciente não me falam de ti. Ou falam, mas na linguagem mística dos sonhos, e eu não tenho paciência para isso, eu quero ver-te.
E as tuas interrogações? Aqui, aqui mesmo, as consigo ouvir. O silêncio da solidão sussurra-me com a tua voz, e fala-me em interrogações. Todas as interrogações com a tua voz sabem bem. É o ênfase que dás nas últimas sílabas da frase, que se transforma num pequeno, subtil, camuflado assobio. E um assobio com uma ilusão nobre. Um falar cortês que te é tão natural... Porque algo assim nunca poderia ser forjado, daí a tua nobreza natural, o teu sangue azul genuíno. A nobreza não está na linhagem, nem na família, nem na educação. Nem nos genes. A nobreza é puramente pessoal. Nasce uma pessoa verdadeiramente nobre de cem em cem anos. E não se vê a nobreza pelas posses, pela cor da pele, pela família, por nada disso. Vê-se pela sua postura. Se uma pessoa tiver de ser nobre, pode ter crescido numa favela do Brasil que um dia ela encontrar-se-à e será distinta de todas as outras pessoas por ser um exemplar exímio de nobreza, e isso simplesmente sabe-se. Tu deves saber que és nobre. Seja de que forma for. Sabes-te superior. Ou porque desvendaste algum segredo existencialista que é demasiado difícil de explicar aos comuns mortais, ou porque nasceste assim. Sentes-te assim, superior, e só o facto de acreditares nisso como um dado adquirido, ninguém se incomoda a negar. És uma dessas pessoas abençoadas com sucesso. Seja o sucesso que quiser. Seja o sucesso de fazer da sua dor arte, da sua depressão comédia, da sua pobreza riqueza, da sua diferença distinção. Seja o que for. És mais que todos nós sim, só por seres tu mesmo. E isso nota-se no assobio das tuas interrogações, porque não há assobio igual. Se queres mesmo ganhar uma argumentação ganhas. Lanças aos comuns mortais duas ou três interrogações retóricas e nós, hipnotizados pelo som melódico do teu assobio, não saberemos contra-argumentar.
És fantástico porque és uma ilha. Sabes-te superior e só isso te importa, viver em Alcatraz. Fechado. Isolado. E mostras-te a quem queres, e tens o que pretendes, e encontras o que procuras. Porque és grandioso demais para dares-te ao luxo de não seres um ser intrinsecamente social, porque és grandioso demais para te dares ao luxo de rejeitares qualquer ritual social (que nós, porém, temos uma necessidade enorme de respeitar), porque és quase divino e ultrapassas tudo o que nós valorizamos. Valores como o amor, a amizade, a lealdade, o respeito; são tudo coisas plebeias para ti. Sabes que são coisas mundanas, estúpidas. Para ti nada disso existe, esses são simplesmente elementos ilusórios que os mortais criam com o único propósito de darem alento à sua pequenez na vida. E eles são fascinantes por criarem esses mecanismos de auto defesa para a depressão, de viverem numa ilusão por eles criada, mas tu és ainda mais fascinante por teres desvendado o sentido e o significado da vida. E não o partilhas com ninguém porque simplesmente tens essa escolha. Por isso és divino. Estás sentado na tua esfera lado a Deus (outro elemento de auto defesa), sabes tanto quanto Ele.
Manipulas os mortais quais marionetas num místico perverso jogo que para ti deve ser divertido, com um distorcido ideal de livre arbítrio e justiça. Mas o livre arbítrio e a justiça são elementos ilusórios quando tudo sabes e tudo prevês. É só isso que te torna omnipotente: tudo aquilo que sabes mais do que nós, é tudo aquilo que utilizas contra nós, disfarçado de um livre arbítrio. E és egoísta e injusto, igualzinho a Deus. Fazes-nos sofrer com a dor do teu silêncio e ambiguidade das tuas respostas, sob o pretexto de aprendermos alguma lição que nunca aprenderemos, ou de pôr-nos a uma prova que falharemos. E não nos dás respostas. E só poderias ser considerado ingénuo ou algo menos que divino a menos que quisesses.
E ao aperceber-me de tudo isto, chorei por nada ser e nada compreender, e chorei por ter de utilizar tantos vocábulos numa tentativa desesperada de ser como tu e assim de me salvar. E peço perdão se tive de utilizar tantos termos incorrectamente ambíguos para me explicar. E peço desculpa por ser normal. Porque a tua linguagem é transcendente, e eu assim não sei falar. De transcendente só sei suster a respiração.
Se tudo souber, se em ti me transformar, pode ser que te tenha então, num processo descabido de correlação.
11 June 2007
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